Clima, biodiversidade, saúde humana. Esses desafios globais estão conectados por um setor vital da economia: a indústria alimentícia. Atualmente, mais de um terço das terras do mundo são dedicadas à produção de alimentos.
A forma como gerenciamos essas terras afeta os níveis de gases de efeito estufa na atmosfera. Também é o que determina se plantas, insetos e animais poderão prosperar e se as pessoas terão acesso a uma dieta nutritiva.
Embora o sistema alimentar atual tenha sustentado uma população em rápido crescimento e fomentado o desenvolvimento econômico, os ganhos de produtividade tiveram um custo. O desmatamento para obter terras agrícolas, bem como a gestão da pecuária e do solo, levou a indústria alimentícia a ser responsável por quase um quarto das emissões de gases de efeito estufa em nível mundial. Além disso, a má gestão dos fertilizantes provocou a eutrofização das vias navegáveis, e a utilização de pesticidas químicos degradou os recursos naturais de que o sistema alimentar depende.
Essas práticas ameaçam a biodiversidade, poluem o meio ambiente e impactam nossa saúde. Para cada dólar gasto em comida, dois são perdidos em custos de saúde, ambientais e econômicos. Metade desses custos – que chegam a USD 5,7 trilhões por ano em todo o mundo – resulta da forma como os alimentos são produzidos e de como os resíduos e subprodutos alimentares são tratados.
Mas isso tudo pode mudar. O sistema alimentar pode ser redesenhado por completo para combater ativamente as mudanças climáticas e a perda de biodiversidade, promover a saúde humana e, ao mesmo tempo, reduzir os custos para a sociedade. Ao reconectar as comunidades com a produção local de alimentos, mudar a maneira como cultivamos e concebemos os produtos alimentícios e aprimorar o tratamento de subprodutos e resíduos, podemos criar uma economia circular para alimentos capaz de oferecer cinco benefícios relevantes para a sociedade e o meio ambiente.
1. Regenerar os sistemas naturais
Em uma economia circular, os alimentos são produzidos de forma regenerativa. Isso melhora a saúde do ecossistema local como um todo, melhorando também a saúde humana e protegendo os habitats naturais.
A produção regenerativa de alimentos envolve um amplo conjunto de métodos com dois resultados claros e complementares: a produção de alimentos de alta qualidade e a melhoria do ecossistema natural circundante. Empregando técnicas agrícolas como a agrossilvicultura e a permacultura, os agricultores regenerativos usam fertilizantes orgânicos em vez de sintéticos e usam práticas como o pastoreio rotativo, em que o manejo dos animais aumenta a produtividade da terra, e a rotação de culturas, em que diferentes espécies são cultivadas no mesmo pedaço de terra durante as estações de cultivo.
A diversidade é a chave. Se todas as culturas são colhidas ou se algumas são cultivadas durante todo o ano, a diversidade pode proporcionar benefícios para a saúde, o meio ambiente e os negócios.
Um resultado direto da diversidade de culturas é a diversidade alimentar, considerada positiva para a nossa saúde pelos nutricionistas. Atualmente, mais de 75% dos alimentos provêm de apenas 12 espécies vegetais e cinco espécies animais. A dependência de uma pequena variedade de alimentos levantou uma preocupação: dietas "ricas em energia, mas pobres em nutrientes", com deficiências de micronutrientes que afetam pelo menos 1,5 bilhão de pessoas. Mas existem mais de 200 mil espécies vegetais comestíveis no mundo – o cultivo regenerativo de culturas diversificadas não é bom apenas para a nossa saúde, mas também para a natureza.
No estado de Nova York, a High Falls Farm cultiva mais de 100 variedades raras de macieiras junto a uma matriz de outras culturas, incluindo castanhas, avelãs, amoras, mamões e muitas ervas medicinais perenes. Essa diversidade permitiu que as populações locais de insetos prosperassem, beneficiando outras espécies na cadeia alimentar local. É um exemplo de como as técnicas agrícolas regenerativas melhoram a saúde do solo, fornecendo habitats vitais para microrganismos no início da cadeia alimentar (como fungos, insetos e os animais que dependem deles), e retêm mais água, melhorando a fertilidade e a produtividade da terra.
Terra produtiva é boa para os negócios. No Japão, o agricultor Takao Furuno introduziu patos em seus arrozais como uma alternativa a pesticidas químicos e fertilizantes. Os patos comem ervas daninhas e pragas e depositam seus resíduos nos campos, o que melhora a fertilidade do solo. Com esse método, Furuno aumentou a produção de arroz de sua fazenda entre 20% e 50% em comparação às práticas convencionais. Além disso, a fazenda agora também gera receita a partir dos ovos e da carne de pato, além de figos, legumes e trigo, comprovando que diversificar também é rentável para os negócios.
2. Combater as mudanças climáticas
Uma economia circular para alimentos poderia reduzir as emissões de gases de efeito estufa do setor em 49% ou 5,6 bilhões de toneladas de CO2 até 2050.
Ao plantar culturas de cobertura que crescem por longos períodos de tempo, empregando agrossilvicultura ou outros métodos regenerativos que permitem que a fotossíntese ocorra durante todo o ano, o CO2 é extraído da atmosfera e vai para as raízes das plantas e para os micróbios do solo ao seu redor. Ao mesmo tempo, permitir que as raízes e o restolho das plantas colhidas se decomponham na terra devolve carbono ao solo, assim como o uso de fertilizantes orgânicos feitos de estrume, subprodutos de plantas decompostas e resíduos de alimentos não comestíveis.
Para criar fertilizantes orgânicos e garantir que sejam acessíveis, é possível valorizar os fluxos de resíduos orgânicos gerados nas cidades. A cada ano, as cidades geram mais de 2,8 bilhões de toneladas de resíduos orgânicos, dos quais apenas 2% voltam ao sistema. Reconhecendo o potencial de usar essa matéria orgânica para armazenar mais carbono em terras agrícolas, empresas, governos e outras organizações estão recorrendo a digestores anaeróbios para transformar resíduos orgânicos em adubo composto. Tanto pequenos projetos, como o de Malton, no Reino Unido, quanto empreendimentos maiores, como o Plant Chicago, nos Estados Unidos, começam a obter ganhos com essas mudanças.
Em outros lugares, as empresas pretendem reduzir as emissões de gases de efeito estufa eliminando resíduos comestíveis de alimentos desde o início. Reduzir o desperdício de alimentos comestíveis em apenas 50% até 2030 pode reduzir as emissões anuais em 1,4 bilhão de toneladas de CO2, e várias empresas começam a perseguir essa meta. No Japão, a produtora de temperos Mizkan criou a marca Zenb – que significa "tudo" em japonês – transformando o que normalmente seria subproduto alimentar em produtos alimentícios, incluindo espigas de milho, vagens de soja verde e cascas de beterraba. Nos Países Baixos, a Surplus Food Factory utiliza a parte superior dos tomates, não utilizada pelos produtores de hambúrguer, para fazer sopa, junto a outros alimentos considerados inadequados para uso comercial. Chefs, desenvolvedores e outros profissionais envolvidos no design de produtos alimentícios podem contribuir para reduzir as emissões, promovendo um redesenho dos alimentos.
3. Melhorar o acesso a alimentos nutritivos
Ao reconectar cidades com as áreas periurbanas circundantes, uma economia circular para alimentos cria resiliência no setor e melhora a segurança alimentar.
Mais de 40% das terras irrigadas do mundo estão localizadas em áreas periurbanas, mas os alimentos produzidos nessas terras são frequentemente transportados para consumidores do outro lado do mundo, enquanto produtos similares são importados para as cidades mais próximas. Quando as cadeias globais de abastecimento são interrompidas por eventos como a pandemia de Covid-19, o acesso aos alimentos fica comprometido. Ao reconectar as cidades com a produção local, em equilíbrio com a oferta global, é possível incorporar mais resiliência na cadeia de abastecimento de alimentos, de modo que, independentemente de onde ou qual interrupção ocorra, aqueles que precisam ainda tenham acesso aos alimentos. A redistribuição de alimentos comestíveis excedentes poderia alimentar um bilhão de pessoas até 2050.
Em Medellín, na Colômbia, o programa Huertas para el Abastecimiento (Jardins para Cantinas) conseguiu que 20 toneladas de alimentos produzidos localmente fossem fornecidas durante as duas primeiras semanas de bloqueio da pandemia de Covid-19 na cidade. Os produtores locais contaram com o apoio do conselho municipal para distribuir seus produtos por meio de empresas privadas, facilitando o fornecimento para cantinas populares e, com isso, alimentando os grupos mais vulneráveis. Uma descentralização similar do fornecimento também foi bem-sucedida na Índia, no Quênia e no Vietnã.
China, Reino Unido e EUA deram suporte a práticas de agricultura apoiada pela comunidade (AAC) e as inscrições tiveram um crescimento significativo durante a pandemia. A AAC conecta os produtores de alimentos entre si e com os clientes, estabelecendo redes locais. Com isso, contribuem para a segurança alimentar nas comunidades locais, ao mesmo tempo em que fornecem uma fonte de renda aos agricultores familiares.
4. Apoiar as comunidades locais
Além de fornecer segurança alimentar a milhões de pessoas, uma economia circular para alimentos desenvolve resiliência nas comunidades locais.
Cerca de 70% de tudo que comemos vêm da agricultura familiar – são aproximadamente 500 milhões de fazendas familiares espalhadas em todo o mundo. À medida que os países se tornam mais ricos, muitas vezes a agricultura passa a ser industrializada, o que ameaça os meios de subsistência dos agricultores familiares, além de gerar outros efeitos negativos, como o despovoamento das áreas rurais. Ao conectar as pessoas com a produção local de alimentos, porém, é possível preservar as fazendas familiares e beneficiar tanto suas comunidades quanto o meio ambiente.
Apesar de fornecer a maior parte dos alimentos, as fazendas familiares usam apenas 30% dos recursos e 12% das terras agrícolas do mundo. Reconhecendo os benefícios da agricultura familiar tanto para o meio ambiente quanto para as pessoas, a cidade de São Paulo criou mecanismos para ajudar a comunidade local de agricultores a prosperar e, ao mesmo tempo, fornecer alimentos cultivados local e regenerativamente às populações carentes. Para isso, a cidade dedicou 30% de seu território à agricultura familiar. Com a produção dessas áreas, a prefeitura fornece alimentos para a merenda escolar e bancos de alimentos para garantir que as pessoas mais vulneráveis tenham acesso a frutas e hortaliças frescas. A iniciativa também garante meios de subsistência para os agricultores e suas famílias, com o benefício adicional de que o cinturão verde ao redor da cidade contribui para deixar o ar mais limpo.
Relações urbano-rurais como essa são cada vez mais consideradas uma prioridade para desenvolver resiliência em comunidades de todos os tamanhos. A Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) lançou recentemente a Iniciativa Cidades Verdes, que visa "aumentar o bem-estar das pessoas", beneficiando tanto os moradores de áreas urbanas quanto os "stakeholders relacionados aos espaços verdes". As atividades delineadas pela iniciativa incluem conectar os produtores com os mercados locais, criar centros inovadores de agroprocessamento de alimentos, gerar empregos "verdes" e defender a produção local. Muitas das cidades-alvo iniciais estão em regiões em desenvolvimento, onde promover uma economia circular para alimentos pode permitir que os agricultores familiares ultrapassem a produção industrial de alimentos.
5. Economizar dinheiro e criar valor
Ao criar uma economia circular para alimentos, as cidades podem obter ganhos econômicos de USD 2,7 trilhões por ano até 2050.
Ao fornecer alimentos cultivados de forma regenerativa e local e aproveitar ao máximo alimentos e resíduos, as cidades podem obter ganhos de USD 2,7 trilhões por ano até 2050. A cidade de Bruxelas, por exemplo, gera mais de USD 130 milhões por ano produzindo 30% de seus alimentos localmente e com o uso de práticas regenerativas. Com isso, a cidade consegue reduzir pela metade o desperdício de alimentos e converter metade dos resíduos orgânicos restantes em adubo composto de alta qualidade.
Aproveitar os fluxos de resíduos orgânicos, que contêm altos níveis de nitrogênio e fósforo, por si só poderia liberar mais de USD 700 bilhões para cidades em todo o mundo – e a valorização desses fluxos já tem criado novas oportunidades de negócios. Desde 2008, a AgriProtein, sediada no Reino Unido, transforma resíduos alimentares em novos produtos, incluindo óleo, fertilizante orgânico e ração animal. Cada uma das instalações da empresa é capaz de processar pelo menos 350 toneladas de resíduos por dia, que são então usados para alimentar larvas de mosca. Ao final desse processo, as larvas são selecionadas para criar os produtos da AgriProtein. No Quênia, de forma similar, a Sanergy cria ração animal e fertilizante orgânico à base de insetos, mas com a coleta de resíduos humanos. A Sanergy fornece aos moradores de favelas urbanas soluções de saneamento sem coleta de esgoto e as franqueia aos membros da comunidade, coletando resíduos todos os dias para serem transformados em produtos úteis.
O aumento do uso de fertilizantes orgânicos em vez das alternativas químicas também gera benefícios à saúde, com potencial para reduzir os custos correspondentes em USD 550 bilhões em todo o mundo. Atualmente, a exposição dos trabalhadores rurais a pesticidas gera prejuízos de quase USD 1 trilhão, e a exposição de longo prazo a baixos níveis de pesticidas é associada a doenças como câncer, asma e depressão, redução do QI e taxas mais altas de transtorno do déficit de atenção com hiperatividade (TDAH). Só os dois últimos custam à União Europeia cerca de USD 150 bilhões por ano.
À medida que os benefícios econômicos da economia circular para alimentos se tornam mais claros, com mais empresas e formuladores de políticas trabalhando para que os nutrientes sejam continuamente reciclados, o sistema passa a funcionar melhor para todos – trabalhando com a natureza para proteger a biodiversidade, promover a saúde humana e estabilizar nosso clima.