Da infraestrutura aos sistemas financeiros, tudo hoje é configurado para dar suporte à nossa atual economia linear. Esses mecanismos, já arraigados, dificultam a mudança de um sistema tão vasto e complexo quanto a economia global. O movimento em prol da economia circular tem aumentado, mas como podemos nos libertar dos moldes lineares?
Você se lembra do Betamax? Não, é provável que não (principalmente se você for da geração Netflix). Apesar de muitas vezes ser considerado uma tecnologia superior às fitas de vídeo na década de 1980, foi o formato VHS que dominou os aparelhos de TV e o mercado. O Betamax foi relegado aos livros de história.
Na mesma época, os acadêmicos que estudavam as inovações tecnológicas usavam o termo lock-in para descrever a resistência característica das tecnologias dominantes, apesar do surgimento de melhores alternativas. O economista W Brian Arthur argumentou que “tecnologias modernas e complexas geralmente apresentam retornos crescentes, pois, quanto mais utilizadas, mais se adquire experiência com elas e mais são aprimoradas”. À medida que a tecnologia melhora, passa a ser cada vez mais utilizada, e os fatores políticos, tecnológicos e sociais evoluem em conjunto.
Esse ciclo de reforço pode encurralar o mercado, bloqueando a tecnologia dominante e descartando as alternativas subsequentes – mesmo que sejam superiores. Por sua vez, a interação das condições facilitadoras cria uma inércia que dificulta a mudança de uma solução para outra. Uma decisão tomada historicamente, pelas melhores razões, pode ter impactos duradouros até hoje.
A mesma lógica pode ser aplicada ao sistema econômico. O sistema industrial foi moldado em uma época em que a população global era muito menor, e os recursos, aparentemente abundantes. O sistema de extrair materiais do solo, produzir bens a partir deles e eventualmente descartá-los não parecia problemático no princípio. No entanto, à medida que o mundo se desenvolveu e a população cresceu, o modelo econômico convencional atingiu seus limites. Apesar do crescente reconhecimento das limitações desse sistema e das vantagens econômicas e ambientais de uma economia circular, dinâmicas poderosas nos mantêm presos aos moldes tradicionais. Uma série de restrições individuais, talvez até superáveis por conta própria, juntas são um reforço ao modelo linear e criam um aprisionamento sistêmico.
Como é o aprisionamento linear?
Tomemos como exemplo os resíduos de equipamentos elétricos e eletrônicos (REEE). Trata-se do fluxo de resíduos que mais cresce na Europa (e na América), com matérias-primas secundárias estimadas em EUR 55 bilhões. Apesar das políticas e tecnologias já existentes e do potencial de negócios de um sistema mais circular, um estudo finlandês mostrou que a aceitação dessas soluções ainda é lenta. Por quê?
As razões são inúmeras e interligadas. Por exemplo, a infraestrutura atual é configurada para um processo de reciclagem que recupera apenas um número limitado de metais e plásticos de baixa qualidade; o investimento inicial em uma nova infraestrutura de circuito fechado, que permitisse captar o valor de todos os materiais – em especial elementos críticos de terras raras –, seria significativo. Os produtos não são projetados para ser desmontados, e a quantidade de material que utilizam pode ser pequena, o que torna desafiadora a coleta de um volume economicamente viável para reciclagem, especialmente à medida que os dispositivos diminuem de tamanho. O modelo econômico atual favorece os negócios convencionais, que podem descartar equipamentos de forma barata e, ao mesmo tempo, cumprir as normas ambientais. Os regulamentos necessários para evitar o “turismo” e o descarte de resíduos, podem inadvertidamente impedir o desenvolvimento de serviços de reciclagem hiperespecializados para recuperar materiais, o que pode exigir cooperação internacional. A legislação da área tem evoluído, e já conseguiu aumentar a reciclagem na União Europeia, por exemplo, mas até agora não incentivou a redução do consumo ou a reutilização de materiais.
Considere outro caso: a indústria do concreto, um setor com uso intensivo de energia e que representa entre 4% e 8% das emissões globais de gases de efeito estufa. Um estudo na Holanda definiu uma complexa gama de fatores que inibem a mudança do sistema atual, apesar do surgimento de alternativas menos poluentes. Entre eles, está o fato de que as inovações que substituem ou reduzem os insumos necessários para a produção convencional de concreto contam com o apoio de organizações que pretendem reduzir seus custos, mas enfrentam a oposição de empresas de cimento, areia e cascalho, que perderiam negócios. Interesses ao longo da cadeia de valor podem ter um poderoso efeito de lobby e, junto aos altos custos iniciais, desincentivar o empreendedorismo e a entrada de novos atores. As inovações podem não estar em conformidade com regulamentações, normas e certificações convencionais – e mudar essas exigências exige um nível de capital, tempo e influência muitas vezes só disponível entre as empresas já bem estabelecidas. Além disso, treinamentos e capacitações para profissinais de engenharia e do setor de construção em geral são focados em materiais tradicionais, e os gerentes de projeto normalmente não são recompensados por inovações utilizando recursos limpos. Como consequência, uma série de forças mantém a tomada de decisão dentro dos moldes convencionais.
Assim como já acontece com as indústrias estabelecidas, esse aprisionamento pode afetar também as emergentes. A Dinamarca, por exemplo, investiu em incineradores “limpos” para transformar resíduos em energia. Essa parecia uma solução atrativa e inteligente de gerar energia a partir de resíduos, uma vez esgotadas as opções de reciclagem. Hoje, a incineração responde por 5% da geração de eletricidade e cerca de 20% do aquecimento urbano no país. O retorno do investimento nessa infraestrutura pode ser de várias décadas, o que comprometeu o país com a tecnologia e fixou a demanda por resíduos. Agora, para manter as luzes acesas, a Dinamarca precisa importar resíduos para usar a capacidade excedente, o que gerou um aumento das emissões de CO2. Na verdade, a Europa atualmente tem evitado a incineração devido ao receio de que a dependência dessas usinas prejudique a reciclagem e desencoraje os avanços em direção a uma economia circular.
Em diversos setores, atores, infraestrutura e legislação criam um poderoso conjunto de forças que cultivam o status quo e deixam as inovações de fora. Decisões políticas e comerciais podem resultar em investimentos de longo prazo que nos mantêm presos a um determinado modelo.
Como desfazer um aprisionamento?
Fixo, inalterável, imóvel: por definição, um aprisionamento pode soar bastante definitivo. Mas a mudança é possível. Desafios como esse precisam ser abordados em escala sistêmica para combater suas causas.
O motor de combustão é um bom exemplo de um sistema que parecia quase imutável, graças a uma operação que envolve a extração de combustíveis fósseis, o processo de refinamento e uma ampla infraestrutura de postos de combustíveis. Os fabricantes operam linhas de produção complexas para fabricar motores de combustão familiares, e o preço é baixo em comparação com outras formas de mobilidade pessoal. A atual dependência dos carros movidos a combustíveis fósseis é um reflexo de decisões tomadas no início de 1900, quando as tecnologias elétrica, a vapor e a gasolina competiam pelo domínio: o preço baixo do Ford Modelo T, produzido em massa, acabou vencendo o páreo. Antes da virada do milênio, seria difícil imaginar outra forma de transporte pessoal.
Avanços rápidos, e hoje os veículos elétricos (VE) balançam o barco. Em 2021, as vendas de carros elétricos representaram quase 9% do mercado global, contra 2,5% apenas dois anos antes, e o apetite do consumidor, segundo alguns comentaristas, atingiu um ponto crítico. Investimentos têm inundado o mercado de veículos elétricos: a GM anunciou uma injeção de caixa de USD 6,6 bilhões em uma tentativa de destronar a Tesla (avaliada em USD 1 trilhão), a Ford está gastando USD 20 bilhões para acelerar o desenvolvimento de carros elétricos, e a Toyota, USD 35 bilhões.
As chaves para desbloquear o mercado de automóveis? Inovação, investimento e políticas de incentivo.
Em primeiro lugar, a tecnologia disruptiva para melhorar as baterias e ampliar o alcance e a velocidade dos carros elétricos mudou o cenário. A Tesla é um exemplo, como uma das principais empresas na corrida para impulsionar a tecnologia VE.
O investimento pesado na tecnologia acelerou a mudança.
E, então, políticas de incentivo. “Esse é um exemplo de ruptura de um aprisionamento a partir das políticas”, diz Simone Vannuccini, professora de Economia da Inovação na Science Policy Research Unit (SPRU), University of Sussex Business School, citando exemplos internacionais de legislação de ar limpo, educação pública, investimentos na rede de carregamento, subsídio para carros elétricos ou incentivos específicos, como o acesso a corredores de ônibus. “Para qualquer tipo de tecnologia em que não haja um incentivo imediato – por ser muito cara ou por não haver retorno imediato –, políticas de incentivo podem acelerar o processo de mudança”, acrescenta. “As políticas, se bem elaboradas, podem romper um aprisionamento.”
Libertando-se: do linear ao circular
Os mesmos princípios podem ser aplicados à transformação de nossa economia. Inovação, investimentos e políticas de incentivo são alavancas fundamentais na mudança do sistema para uma economia circular.
Inovação
A inovação circular pode se dar em diferentes setores. As startups, por exemplo, têm agilidade e criatividade para testar e ser pioneiras em modelos de negócios circulares disruptivos. É o caso da Sojo, que tem tornado o conserto de roupas mais acessível, ou da Ecovative, que fabrica embalagens compostáveis a partir de raízes de cogumelos.
As instituições públicas podem promover a inovação apoiando ativamente a pesquisa e o desenvolvimento. Com a economia circular definida como uma de suas ambições, a União Europeia financia uma série de programas em busca de inovações circulares, da energia solar à química.
Já as empresas podem apoiar novas formas circulares de fazer negócios, utilizando sua capacidade de pesquisa e desenvolvimento para descobrir novas soluções. A DS Smith, por exemplo, dobrou o investimento em P&D em busca de inovação circular de ponta, com equipes de pesquisa dedicadas, plataformas virtuais que facilitam a troca de informações e ideias e um centro de aceleração de prototipagem. Esse suporte estratégico pode ser um conhecimento de mercado, permitindo que as empresas desenvolvam novos fluxos de receita dentro da economia circular – que representa uma oportunidade de USD 4,5 trilhões – e permaneçam competitivas.
Investimento
Uma vez que soluções viáveis tenham sido encontradas, elas precisam de investimento para atingir escala suficiente e desafiar o status quo. O setor financeiro tem um papel essencial na mobilização de uma economia circular, a qual, por sua vez, oferece ao setor uma oportunidade significativa para cumprir compromissos climáticos e objetivos ESG e, ao mesmo tempo, explorar novas e melhores fontes de crescimento.
O setor está ciente da oportunidade. O investimento na economia circular cresceu rapidamente nos últimos anos. Os ativos geridos por meio de fundos de ações públicas aumentaram 28 vezes desde o final de 2019, de USD 0,3 bilhão para quase USD 9,5 bilhões no final de novembro de 2021. A BlackRock, maior gestora de ativos do mundo, lançou seu primeiro fundo de economia circular em 2019, hoje avaliado em cerca de USD 1,6 bilhão (valores de janeiro de 2023). Do outro lado, a emissão de títulos e empréstimos bancários relacionados a projetos de economia circular em 2021 giraram em torno de USD 32 bilhões e USD 16 bilhões, respectivamente.
Reconhecendo a oportunidade, as grandes empresas não estão apenas contribuindo para a inovação, mas também investindo em oportunidades circulares para acelerar a escala. A L'Oréal, por exemplo, investiu EUR 50 milhões em um fundo de inovação circular destinado a expandir soluções inovadoras, e o Google acaba de lançar um novo acelerador para startups de economia circular.
Políticas de incentivo
Em paralelo, políticas de incentivo podem ser um facilitador poderoso. De forma semelhante ao que acontece com os veículos elétricos, políticas eficazes podem romper o bloqueio e impulsionar um sistema rumo a uma mudança positiva.
Os formuladores de políticas, portanto, carregam uma responsabilidade significativa. As consequências são muitas vezes imprevistas e, em alguns casos, as políticas podem ter o efeito oposto ao desejado, reforçando ainda mais algumas abordagens lineares. É altamente improvável, por exemplo, que os formuladores de políticas na Dinamarca pretendessem tornar o país dependente de resíduos estrangeiros ou aumentar as emissões de carbono. “Definir certas metas de reciclagem pode significar que a indústria as cumpre apenas por continuar como sempre”, diz Henna Sundqvist-Andberg, cientista sênior do Centro de Pesquisa Técnica VTT da Finlândia. “Não precisa inovar.”
O desenvolvimento de políticas alinhadas com os cinco objetivos universais de políticas para economia circular pode evitar o reforço do aprisionamento. Por exemplo, políticas de Responsabilidade Estendida do Produtor (REP) e os Esquemas de Devolução de Depósitos (EDD) podem incentivar a circulação de materiais, enquanto a implantação de subsídios e incentivos fiscais pode orientar a indústria em direção a uma economia circular.
“É um desafio estabelecer tais regulamentações”, continua Sundqvist-Andberg. “Há muito em jogo para muitos atores. O que pode e deve ser feito é reconhecer quem vai perder com essas transformações, a fim de oferecer apoio para que encontrem novas formas de fazer negócios.”
Evitando o aprisionamento
Políticas e estratégias, como tudo o mais, também são projetadas, de modo que os princípios do design circular são uma ferramenta útil para moldar sistemas eficazes. Para evitar o aprisionamento, pode-se começar adotando uma visão macro, a fim de observar todo o sistema que as medidas pretendem influenciar. Essa etapa permite que os formuladores de políticas compreendam os impactos que uma determinada medida pode ter para os atores estratégicos e observem os ciclos de feedback, tanto positivos quanto negativos.
Da mesma forma, adotar uma visão única e coerente e fazer uma varredura do horizonte futuro pode evitar consequências não intencionais, como "congelar" a reciclagem de maneiras que impeçam o desenvolvimento de outras soluções, como a eliminação de resíduos ou a reutilização de materiais.
Uma vez que novas políticas ou estratégias tenham sido implementadas, é importante avaliá-las e ajustá-las de forma contínua para garantir que alcancem o efeito esperado. Estamos projetando para uma economia circular, mas ainda operamos em um sistema linear; ou seja, é improvável que as intervenções sejam totalmente circulares de imediato, mas devem caminhar em direção ao objetivo final. O design é um processo iterativo, e a recalibração constante deve ser considerada uma parte fundamental do processo. Além disso, os formuladores de políticas nunca devem se contentar com os resultados, sugere Sundqvist-Andberg: “Devem ter sempre metas mais ambiciosas.”
Abrir espaço para mudanças
Mudar um sistema tão amplo quanto a economia não é fácil, mas é possível e necessário. O modelo convencional, business as usual, não funciona mais. O sistema linear – dependente da extração, do desperdício, da poluição e da perda de biodiversidade – já teve seus dias.
Trabalhando juntos, podemos moldar uma economia nova e melhor, que possa funcionar no longo prazo. Como pondera Sundqvist-Andberg: “O sistema não é imutável, embora às vezes pareça”.